1 de nov. de 2013

Para que serve uma lésbica? | Lotta Macedo Soares

O maior castigo que um ser humano pode sofrer é o desprezo e o esquecimento.  Aturamos ser odiados e caluniados porque podemos nos defender, xingar de volta , processar e de certa forma lucrar com isso. Mas como reagir diante do desprezo e da indiferença?
Nossa sociedade machista tem o dedo em riste, pronto para acusar e  para deletar pessoas, desde o tempo que a informática ainda não existia, não obstante que o acusado tenha  feitos e valores, principalmente no que diz respeito à mulher.  Pequenas sutilezas que ampliam uma inverdade até transformá-la em verdade absoluta.
Sobre Lota Macedo Soares,  é dito que  era uma autodidata e isso, se por um lado releva o seu talento para a Arquitetura, pode lançar dúvidas sobre a sua competência. No entanto a moça filha de brasileiros, nascida  em Paris que veio para o Brasil com 5 anos de idade, “começa a ter aulas de arquitetura com Carlos Leão e em 1935 entra para o curso de pintura na Universidade do Distrito Federal, ministrado por Cândido Portinari”.
Ok, que isso não lhe concedeu diploma, mas não justifica a total omissão do fato de ter estudado.
Lotta  teve  “um relacionamento diário com Enrico Bianco, Burle Marx, além de vários outros artistas e intelectuais. Produz um work shop com Mário de Andrade, em 1937, participa com Portinari dos afrescos do atual Palácio Capanema, marco da arquitetura modernista, onde compartilha idéias com Lúcio Costa, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Moreira”.


Entre o exílio do seu pai e a transferência de todos os  seus bens  para o nome de um amigo a fim de que não fossem seqüestrados pelo governo,  fato  que gerou o desentendimento familiar entre eles,  essa mulher de temperamento marcante, viveu abertamente a sua orientação sexual, viveu tórridos  romances, protagonizou por 15 anos um triângulo amoroso, mas foi a sua paixão pela arquitetura e o ideal  de  transformar o Parque do Flamengo num a área de cultura que o Brasil ainda não tinha, que mudou o curso da sua história.


Não  tivesse abandonado a casa de Samambaia, onde de certa forma recuperou o psicológico detonado de Elizabeth Bishop,  não teria necessitado da assessoria de Mary. Poderia ter vivido muitos mais anos da sua vida feliz no paraíso de Petrópolis, com Elizabeth Bishop sob controle.
Alguma coisa na vida do ser humano precisa dar certo para que ele tenha um mínimo de felicidade e vontade de viver.
Elizabeth  sentia-se sozinha em Petrópolis e veio para a capital, voltou a fazer do álcool companhia;  a falta de tempo de Lota que se dedicava ao trabalho, os ciúmes de Elizabeth por Lota conviver  constantemente  com sua ex que lhe assessorava,  as incompreensões e ataques dos políticos e burocratas de plantão da época  ávidos por  se apropriarem  da obra da vida de Lota,  mais um cenário político conturbado e disputas em família pela herança doada pelo pai, tornaram-se uma combinação por demais explosiva para aquela mulher que como qualquer um, ainda que sendo forte e decida tinha suas fragilidades.


Um pecado do filme Flores Raras, que segundo o seu diretor, trata das perdas, foi exatamente deixar de mostrar com nitidez outras perdas de Lota Macedo Soares. Focando a narrativa no relacionamento dela com Elizabeth, apenas situando historicamente seu empenho e não mencionando  a impossibilidade que assinasse a obra da sua vida.
Elizabeth Bishop, poeta inglesa teve  amplamente seu centenário comemorado no seu país. No Parque do Aterro do Flamengo, não existe uma placa sequer mencionando que Lota, sua criadora também deveria ali ter suas comemorações. 


Lota Macedo Soares e repito esse nome quantas vezes aqui seja possível, foi uma personagem varrida da história, como um mal, num tempo que nem mesmo dinheiro, berço, cultura, talento, eficiência eram suficientes para tornar uma mulher visível.
No nosso cotidiano vemos essa história se repetir, é como se uma mulher nunca fosse boa o suficiente se não estiver pronta para consumo e uma lésbica ocupasse na hierarquia da nossa sociedade os degraus inferiores, não obstante seu talento e capacidade, pois se as mulheres hoje são vistas como mercadorias para consumo, afinal para que serve uma lésbica?

Se as mulheres exigentes e ciosas do seu trabalho, são taxadas de mal amadas e mal comidas, se as feministas recebem o rótulo de feias, mal amadas e mal humoradas. Se começa a ser percebido algo de errado com as meninas que não fazem os  tais “quadradinhos de 8” (ou qualquer algarismo que seja) e se não há contextualização ainda que equivocada para as lésbicas, num mundo onde mesmo o entretenimento do segmento LGBT, só visualiza os sexo masculino, onde gays são  notórios por suas habilidades em algumas profissões ou simplesmente pelo estereótipo de ser o melhor amigo da mulherada, a diversão dos programas humorísticos, a diversão da galera.
Para que afinal, serve uma lésbica, ciente, determinada e jamais embalada para consumo?


Publicado em Outubro, 2013 na Revista S!, coluna Vida Urbana por Rozzi Brasil

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